quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

O cinegrafista Santiago, a gari Cleonice e você: qual morte vale mais?

Charge: Latuff
Artur Pires

Santiago Andrade, o cinegrafista da Bandeirantes atingido acidentalmente por um rojão lançado por um manifestante no Rio de Janeiro, está morto. É extremamente doído que alguém faleça durante uma manifestação. Lamentável! No entanto, essa não é o primeiro óbito desde que irromperam passeatas Brasil afora, em junho de 2013. Segundo a compilação de Eduardo Sterzi, morreram também “a gari Cleonice Vieira de Moraes, em Belém (PA), vítima do gás lacrimogêneo lançado pela polícia militar; 13 mortos na favela Nova Holanda, no Complexo da Maré (RJ) – neste caso, a imprensa sequer se deu ao trabalho de informar todos os nomes; o estudante Marcos Delefrate, de 18 anos, em Ribeirão Preto (SP), atropelado por um carro que furou um bloqueio de manifestantes; Valdinete Rodrigues Pereira e Maria Aparecida, atropeladas em protesto na BR-251, no distrito de Campos Lindos, em Cristalina (GO); Douglas Henrique de Oliveira, de 21 anos, que caiu do viaduto José Alencar, em Belo Horizonte (MG), por ter sido acuado pela polícia militar; o marceneiro Igor Oliveira da Silva, de 16 anos, atropelado por um caminhão que fugia de uma manifestação, numa ciclovia próxima à Rodovia Cônego Domênico Rangoni, na altura de Guarujá (SP); Paulo Patrick, de 14 anos, atropelado por um táxi durante manifestação em Teresina (PI); Fernando da Silva Cândido, ator, por inalação de gás lançado pela polícia, no Rio de Janeiro; e, por fim, o senhor que foi atropelado por um ônibus, ao tentar fugir da polícia, na mesma manifestação em que o cinegrafista Santiago foi atingido – sobre esta outra vítima, nenhuma linha na imprensa”.

Muitas mortes, né? Mas você não ficou sabendo de (quase) nenhuma delas ou, quando muito, leu rapidamente uma notinha de rodapé num desses jornalões comerciais ou viu um informe de 10 segundos na televisão. Não se entrevistaram os pais, os cônjuges, os filhos, os amigos desses outros mortos. Não se repetiram reiteradas vezes imagens dos disparos policiais sobre os manifestantes, do lançamento de inúmeras bombas de gás lacrimogêneo e spray de pimenta, que, como visto acima, mataram manifestantes. Não vimos um editorial raivoso de William Bonner, no JN, contra a PM.

Pelo que se percebe, está claro que há uma deliberada seleção midiática de quais mortes devem render comoção nacional e quais devem ser varridas para debaixo do tapete. Queda evidente que, quando a violência policial é a responsável pelas mortes – o que já ocorreu!, há um acordo tácito midiático de mal informar o fato, além de fazê-lo esquecer de um dia para o outro. Quando a morte veio por um rojão lançado por um grupo black bloc (o que também é condenável, uma vez que aqueles que estão ali trabalhando não devem jamais ser alvos dos ataques dos manifestantes, mas sim as empresas que eles representam), aí a mídia usa de todo o seu poder de espetacularizar a notícia para convencer o senso comum de que, além de vândalos e baderneiros, os black blocs são, agora, assassinos. Aí vem o William Bonner e o William Waack, com seus cinismos habituais, condenar a ação violenta dos black blocs.

Charge: Latuff
Ora, não é por demais lembrar que diariamente – isso mesmo: diariamente! – policiais matam pessoas em todo o Brasil: são gente pobre, moradores das favelas. De acordo com dados do 7º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado recentemente, em média, cinco pessoas são mortas por dia no Brasil pela polícia, que vê o povo pobre, dos guetos, como um exército inimigo. Não é demais lembrar que há grupos de extermínio da polícia atuando em diversos estados brasileiros. Não é demais relembrar que o pedreiro Amarildo foi morto por policiais após ser levado para depoimento num quartel da Unidade de Polícia “Pacificadora” (UPP) da Rocinha, no Rio de Janeiro. E, sabemos, há diversos Amarildos “desaparecendo” cotidianamente nas periferias brasileiras após abordagens policiais, os chamados autos de resistência, que é um nome pomposo que a PM inventou para designar quando ela mata alguém – isso sem falar nas cifras ocultas que não entram nessa estatística.

Você já viu algum editorial da mídia discutir todo esse abuso policial? Debater toda essa carnificina nas periferias? Analisar a remoção violenta de milhares de famílias de suas casas para construção de obras relativas à Copa? Levantar a questão dos inúmeros atentados à liberdade e – vá lá – à Constituição que estão inseridos na Lei Geral da Copa? Viu uma linha sequer sobre o cerceamento do nosso direito de ir e vir nos dias de jogos da Copa? Não, você não viu! E você não verá! Você verá sempre o argumento rasteiro de que a Copa trará avanços para o país (quer discurso mais senso comum que esse?), a condenação dos manifestantes ativistas que se utilizam da tática da ação direta, e, por fim, quando houver óbito, a espetacularização da morte, desde que essa não tenha sido causada pela violência policial e do Estado. Reitero: há, deliberadamente por parte da mídia empresarial, a filtragem da morte que deve ser relevante, daquela que merece apenas uma notinha de rodapé e da outra – essa mais comum – que nem merece ser noticiada. Como se a vida do cinegrafista Santiago valesse mais do que a da gari Cleonice!

É completamente absurdo que a televisão e os jornalões impressos nos pautem a morte de quem devemos chorar. Choremos todos, por todas essas mortes, pelas que já ocorreram e pelas que virão. Nesse instante em que se lê estas linhas, a Polícia mata alguém na favela; alguém da favela mata alguém da classe média; os “alguéns” da favela se matam (de domingo, 9 de fevereiro, a terça, 11 de fevereiro, cinco jovens foram assassinados no Tancredo Neves na disputa pelo controle do tráfico de drogas na região); alguém da classe média dá uma de “justiceiro” e mata alguém da favela ou o acorrenta a um poste. Vivemos uma guerra fratricida cotidiana. A sociedade dominada pelo espetáculo é cada vez mais violenta, porque é cada vez mais desigual, mais excludente. Quem mora nos grandes centros não tem como fugir dessa barbárie, porque ela está impregnada no habitus dessas cidades, ela paira como poeira do tempo, sobre nosso tecido social. A violência, talvez, um dia também bata à sua porta, à minha. Vivendo aqui, nessa guerra, a morte pode também me alcançar. Mas ela jamais seria mais ou menos importante que a da Cleonice. Aliás, alguma morte vale mais que outra?

Viva as Cleonices e os Amarildos brasileiros!

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

O rolezinho e a segregação legitimada

(Charge: Latuff)

Artur Pires

Imagine aí a situação: você é negro e pobre, nasceu e cresceu numa favela. Em toda sua vida, dentre as opções de lazer, ir ao shopping nunca foi sequer cogitado. Não fazia parte de seu universo. Mas aí alguns amigos começam a ir, gostam da idéia e te convidam para um rolé por lá também. Você decide experimentar. E então sai de casa com amigos rumo ao shopping. Combinam de passear por lá, mirar as vitrinas, comer algo nas feéricas praças de alimentação desses recantos, ir ao cinema ou consumir o supérfluo – o tipo de consumo que ocorre nesses lugares. Você, enfim, está lá. Eis que, de repente, policiais militares (PMs fazendo rondas em shoppings já é, por si só, revelador de muita coisa – Pelo fim da PM, pela imediata desmilitarização da Polícia!) e seguranças dirigem-se a você e seus amigos e dizem grosseiramente que não podem ficar ali. Você se recusa a sair. E aí vem o pior: te expulsam a cassetadas, empurrões, tapas e xingamentos.

Essa cena não é imaginária como parece ser. Ela é real, concreta. Mas aí o leitor dá de ombros e diz que isso certamente aconteceu nos anos 50, no sul racista dos Estados Unidos – quem sabe no Alabama ou no Mississipi – ou talvez na África do Sul do apartheid. Mas não! A cena descrita aconteceu em São Paulo, Brasil, 2014, semana passada. E ocorreu também ano passado no Rio de Janeiro (RJ), em Vitória (ES), em Fortaleza (CE) – quem não lembra de jovens negros e pobres sendo expulsos na inauguração de um shopping na Parangaba? Infelizmente, esse fato enojante, de embrulhar o estômago, deverá ocorrer outras vezes, em outras cidades, e nas mesmas cidades novamente. Sabe por quê? Porque, para a sociedade das aparências, a favela não é bem-vinda no templo do consumo burguês. À favela, cabe ir ao shopping tão-somente para ser explorada atrás dos balcões do McDonald´s ou para limpar os banheiros.

Dentro da lógica consumista dessa sociedade, é claro que ela quer, sim!, que os pobres consumam, comprem, ostentem, mas quer assegurar igualmente que esse neoconsumismo da periferia não invada seus templos sagrados. “Como assim dividir espaço nos corredores iluminados dos shoppings com ‘favelados’? Que estes vão fazer suas compras no centro, no beco da poeira, que lá é o lugar deles! Hunf”, pensa nossa elite, empinando ainda mais o nariz. A sociedade brasileira é claramente segregada. Contudo, enquanto a periferia esteve cerceada, limitada às suas fronteiras suburbanas e aos locais “apropriados” para ela, estava tudo bem. Quando ela invade, sem pedir licença, os domínios territoriais exclusivos dos ricos, aí o mito do paraíso racial e de classe brasileiro vai para o brejo.

(Charge: Alpino) 
Para agravar esse quadro pintado com tintas carregadas de opressão, exclusão e marginalização atávicas, a ação da PM em São Paulo foi endossada pela Justiça (peraí, justiça?). Ou seja, a Justiça (justiça?) assinou o atestado de comprovação do apartheid brasileiro.  Há locais em que pretos e pobres não podem andar – é isso o que ela diz com essa decisão absurda! Essa mesma Justiça que abarrota negros e pobres – muitas vezes réus primários, ladrões de varal ou vapores do tráfico de drogas nas favelas - como sardinhas em lata no sistema prisional, ao tempo em que põe vendas nos olhos e é condescendente com os criminosos do colarinho branco – esses de paletó e gravata, que desviam e superfaturam milhões em obras públicas, que removem violentamente pessoas de suas casas em nome de uma organização mafiosa como a FIFA, que compram votos no Congresso Nacional e nas demais casas legislativas Brasil afora para se perpetuarem no poder, que fazem conchavos políticos por debaixo dos panos para engordarem ainda mais suas contas bancárias em paraísos fiscais…

Não percamos de vista que o Poder Judiciário é também um dos apêndices do segregacionismo brasileiro. Via de regra, age para manter o status quo, amparando e sendo generoso com a elite tupiniquim e, por outro lado, lançando sua mão punitiva contra a população dos guetos, sempre atendendo aos ditames do capital, porque, como disse Bourdieu, n´O Poder Simbólico, na atual configuração do sistema político mundial, o Judiciário, o Legislativo e o Executivo estarão sempre a postos para obedecer ao senhor dinheiro. O sistema político está carcomido. O capital é quem canta o funk: “Tá dominado, tá tudo dominado”! O alardeado Estado Democrático de Direito é uma farsa medonha, uma falácia absurda que nos é empurrada goela abaixo diariamente e teatralizada a cada dois anos, nas eleições.

Voltando à questão central do texto, a polêmica dos rolezinhos tem a face positiva de trazer à superfície, de maneira incontestável, a densa segregação de classe e de raça que há no Brasil. Põe definitivamente uma pá de terra sobre o mito do paraíso racial e de classe brasileiro. Não há integração entre as classes sociais no Brasil. O (a) morador(a) da periferia só interage com o burguês quando vai recolher o lixo na casa deste, ou quando dá um “bom dia” da portaria do prédio onde trabalha, ou quando é empregada doméstica numa mansão, ou quando – consequência direta dessa desigualdade - aponta uma quadrada para a cabeça daquele!

"Se eu fosse aquele cara que se humilha no sinal
Por menos de um real
Minha chance era pouca
Mas se eu fosse aquele moleque de touca
Que engatilha e enfia o cano dentro da sua boca
De quebrada, sem roupa, você e sua mina
Um, dois, nem me viu: já sumi na neblina"

(Charge: Duke) 
Assim como na África do Sul do apartheid ou nos estados racistas estadunidenses da primeira metade do século XX, vivemos numa sociedade apartada, profundamente segregada. A relevante diferença é que o segregacionismo brasileiro é ainda mais eficaz, porque sorrateiramente transmite a idéia de que não existe. E é justamente esse véu que acoberta sua feição tenebrosa que o torna ainda mais eficiente e, consequentemente, mais nocivo. Entretanto, com o transbordamento da sociedade do consumo avançando em direção às comunidades periféricas, que antes não faziam parte dessa relação promíscua entre dinheiro e consumismo, vai ser cada vez mais difícil mascarar a tão marcante segregação social brasileira. “É verdade que o capitalismo manteve como constante a extrema miséria de três quartos da humanidade, pobres demais para a dívida, numerosos demais para o confinamento: o controle não só terá que enfrentar a dissipação das fronteiras, mas também a explosão dos guetos e favelas” (Gilles Deleuze, Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle).


Oxalá que essa explosão venha acompanhada de transformações profundas no estado das coisas e nos costumes sociais, bem como traga em seu bojo fagulhas com alto poder de combustão para a derrocada da onipresente estrutura econômica que a todo custo tenta nos impedir de sonhar. Queima babilônia! Como diria Ednardo (Pavão Misterioso), “eles são muitos, mas não podem voar”. 


segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Quem se importa com os mortos da favela?

Charge: Latuff

Artur Pires

Na última terça-feira à noite, após o racha na quadra – que é de lei! -, trocávamos umas idéias na calçadinha do Vanor quando, repentinamente, somos silenciados por dezenas de fogos de artifício que irrompiam no céu lá pras bandas do Tancredo Neves, comunidade da zona sul de Fortaleza com índice baixíssimo de desenvolvimento humano.

Foi uma saraivada de fogos! Não era jogo do Fortaleza nem do Ceará, tampouco dos times da Vila e do Tancredo, que jogam aos domingos. Engolimos a seco! Para muitos, seria apenas mais uma vez pessoas lançando fogos de artifício ao ar. Para nós, que moramos ali próximo e convivemos há diversos anos com aquele ato ritualístico, sabíamos que se tratava de alguma morte. Não uma morte morrida, mas uma morte matada... um homicídio; a bem da verdade, um acerto de contas do crime!

Ligamos de imediato para um amigo que mora por lá, para saber se ouvira falar de alguma notícia trágica. A morte podia ter atingido com sua foice imperdoável algum amigo, um conhecido, mais um. “Escutei aqui também, mas parece que é lá pro Areal, num é aqui não”, disse pelo telefone o amigo consultado. No outro dia, soubemos que de fato a morte tinha deixado seu rastro de sangue e choro no Areal, comunidade situada às margens da BR-116, separada do Tancredo Neves pelo rio Cocó.

Preto, pobre, favela
Coroa chorando, corpo coberto, sangue no chão, ao lado uma vela
Acerto de contas, cheirou e não pagou
Os cara chegaram e cobraram com tiro na cara
O sofrimento fica pra coroa
Que sempre rezava querendo ver seu filho numa boa
(MVBill – Traficando Informaçãoobs: perdeu muito no conceito depois que foi ator da Malhação e jurado do Faustão

O ritual de lançar fogos de artifício ao céu para comemorar e demarcar a morte de um integrante de uma gangue rival está incorporado ao modus vivendi dos jovens dessas comunidades. Há todo um controle geográfico-territorial dos espaços que podem – ou não! – ser ocupados pelos integrantes das facções. O Tancredo Neves tem uma população de cerca de 30 mil pessoas. Segundo dados do Habitar Brasil/BID, 10% dela analfabeta e 70% vivendo abaixo da linha da pobreza. Nessas condições miseráveis, o tráfico se torna um caminho sedutor e natural para grande parte dos jovens! Só no Tancredo, quatro “organizações” do crime disputam o comércio de drogas e armas na comunidade: Coloral, Cachoeirinha, Rua das Araras e Pólo. Quem atravessar o espaço alheio vai pra vala! Isso sem falar das disputas pelo comando do mercado de drogas na região com as comunidades vizinhas da Vila Cazumba, do Tasso e do Areal.

O movimento do crime tem suas leis próprias. Um enorme cabedal de códigos tácitos de conduta e comportamento foi, ao longo dos anos, sendo assimilado pelos “soldados” da atividade. Quem descumpre as regras vira estatística. Como dito, o crime se insinua, seduz e, por fim, abocanha grande parcela dos jovens das comunidades pobres brasileiras. Nessa guerra civil fratricida e insana, quem morre sempre é o preto, pobre, favelado.  Já perdi amigos, vi morrer conhecidos e muitos desconhecidos. Estão se matando num etnocídio diário, que mancha de sangue e lágrimas becos e vielas na periferia. Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do Ceará, até a noite de 8 de dezembro, 286 adolescentes menores de 18 anos foram assassinados na Grande Fortaleza, um aumento de 25% em relação a 2012. Falando no ano passado, houve 1.628 assassinatos na capital cearense, redundando numa média macabra de mais de quatro homicídios por dia. A média em 2013 já passou dos cinco homicídios/dia. Números maiores do que o de países "oficialmente" em guerra. Observe-se que em Fortaleza mata-se, proporcionalmente, cinco vezes mais que em São Paulo. É como diz, com muita propriedade, o Facção Central, em SP Auschwitz – Direto do Campo de Extermínio, as favelas brasileiras são verdadeiros campos de extermínio, locais de carnificina cotidiana.

Esse banho de sangue permanente é completamente ignorado pela classe média e pela elite, que dão de ombros às mortes da perifeira e só se preocupam com a violência quando ela lhe bate à porta, ou seja, sai da favela e toma de assalto seus bens num condomínio de luxo! O extermínio da juventude negra periférica é escanteado para debaixo do tapete. A violência na favela foi admitida como natural pela sociedade. Por que um assassinato num bairro nobre vale mais que a carnificina na favela? O espetáculo fez triunfar a seleção das mortes que precisam ser lamentadas. As dos negros pobres da periferia se transformam em espetacularização nos programas-lixo - e só! A de um classe-mediano vira rapidamente motivo de comoção nacional e de editoriais hipócritas sobre violência urbana na mídia convencional. Reitero: por que uma morte vale mais que as muitas outras? Está tudo errado!

“É verdade que o capitalismo manteve como constante a extrema miséria de três quartos da humanidade, pobres demais para a dívida, numerosos demais para o confinamento: o controle não só terá que enfrentar a dissipação das fronteiras, mas também a explosão dos guetos e favelas” (Gilles Deleuze, Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle).

Da guerra interna, dentro da favela
Só morre preto e branco pobre, que faz parte dela
O sistema faz o povo lutar contra o povo
Mas na verdade o nosso inimigo é outro
O inimigo usa terno e gravata
Mas ao contrário a gente aqui é que se mata
Fazendo justamente o que o sistema quer, saindo para roubar
Para botar um Nike no pé!
(MV Bill – Traficando Informação)

Abrindo aqui um parêntese, o extermínio da juventude negra poderia ser minorado com a legalização das drogas e o consequente desbaratamento das facções do tráfico. É o comércio de drogas, ou melhor, a disputa pelo controle desse mercado clandestino o principal responsável pelas mortes na favela. Legalizar e regulamentar as drogas seria um profundo golpe na raiz de milhares de homicídios no Brasil. A política proibicionista claramente fracassou, promoveu um morticínio generalizado em diversos países do mundo (Brasil, México, Colômbia, etc.) e aumentou o poder do tráfico internacional com a repressão, pois quanto maior a repressão, mais cara a droga - e, consequentemente, maior o lucro dos traficantes. A política de “guerra às drogas”, capitaneada pelos EUA e mimetizada por diversas nações, entre estas o Brasil, tem a clara função de controle social, tanto quando produz a carnificina na favela, bem como quando encarcera moradores dessas comunidades. Enquanto os jovens se matam nos subúrbios pelo comando do tráfico, os grandes barões da droga - aqueles que transportam quase meia tonelada de cocaína por helicópteros - lavam o dinheiro em paraísos fiscais e sentam-se à mesa do capitalismo financeiro para tratar com governantes sobre negócios. Depois, para comemorar o sucesso das empreitadas público-privadas, brindam com uísque doze anos e degustam foie gras.

Os ricos fazem campanha contra as drogas
E falam sobre o poder destrutivo delas.
Por outro lado promovem e ganham muito dinheiro
Com o álcool que é vendido na favela.

Enfim, é chegada a hora de repensar esse modelo por uma alternativa que, ao invés da repressão violenta e de suas consequências nocivas, permita o cultivo caseiro da maconha, promova espaços para o consumo e a compra regulada da erva, como as cooperativas canábicas (comuns em alguns países europeus), privilegie campanhas de prevenção e informação sobre todos os narcóticos (assim como já faz com o álcool e o cigarro), trabalhe com a redução de danos – oferecendo ajuda psicológica e de saúde gratuita aos usuários, ou seja, foque a adicção como questão de saúde pública e não mais como caso de segurança, entre outras medidas. Fecha parêntese.

Charge: Henfil
A polícia, por sua vez, desempenha o seu papel costumeiro. Lava as mãos como Pilatos e faz vista grossa ao morticínio da favela em troca de gordas propinas que subornam dos traficantes. Noutras vezes, é ela mesma a praticante do homicídio. A polícia brasileira é a que mais mata no mundo. De acordo com dados do 7º anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado recentemente, em média, cinco pessoas são mortas por dia no Brasil pela polícia, que vê o povo pobre, dos guetos, como um exército inimigo.

Se diz que moleque de rua rouba,
O governo, a polícia, no Brasil quem não rouba?
Ele só não tem diploma pra roubar,
Ele não se esconde atrás de uma farda suja.
É tudo uma questão de reflexão irmão,
É uma questão de pensar.
A polícia sempre dá o mau exemplo,
Lava a minha rua de sangue, leva o ódio pra dentro.
Pra dentro de cada canto da cidade,
Pra cima dos quatro extremos da simplicidade.

Em 2012, quase 2.000 pessoas foram vitimadas em “abordagens” policiais. Sabemos que quase todas essas mortes entraram para a estatística de “autos de resistência”, que é quando a polícia assassina e quer dizer isso de uma forma polida. Essa terminologia tacanha encobre graves violações de direitos humanos e acoberta ações de grupos policiais de extermínio. Não à toa o Conselho de Direitos Humanos da ONU já recomendou, por mais de uma vez, o fim da PM no Brasil. É preciso que esse debate se avolume e ganhe vulto na sociedade e não se restrinja tão-somente à academia. Desmilitarizar a polícia e repensar um novo modelo de segurança pública é passo imprescindível para garantirmos a democracia e a liberdade reais - não essas de “faz-de-conta” – bem como nos livrarmos de vez dos fantasmas e do modus operandi da ditadura dos milicos, que insistem em nos assombrar quase três décadas após seu fim.

Enquanto essa carnificina ocorre cotidianamente, milhares de outros moradores das favelas, que não escapam à ação controladora do Estado, são entupidos em instituições penitenciárias, que funcionam como verdadeiras universidades do crime. Vejam só que conveniente ao Estado: não dá suporte tampouco garantia mínima de dignidade a estas pessoas durante toda a vida, mas tem a mão rápida e seletiva para algemá-los e conduzi-los ao xilindró na primeira subversão “à ordem e aos bons costumes”. Ou seja: o Estado quase nunca chega aos guetos com sua função de garantir os direitos humanos básicos, mas açoda-se para marcar presença quando é para levar a cabo as funções punitiva e de controle social. É o Vigiar e Punir, de Foucault, sendo levado às últimas e mais bárbaras consequências.

Assim, o Brasil tem hoje a quarta maior população carcerária do mundo, com mais de 580 mil detentos ou 274 por 100 mil habitantes e os mais altos índices de criminalidade do planeta. Percebe-se, claramente, que algo está errado. E é o nosso modelo de segurança pública, inserido numa lógica militar e também – é preciso sempre que se leve em conta – numa engrenagem capitalista do espetáculo, que transforma as mortes da periferia em espetacularização nos programas-lixo da tevê, que rendem audiência e, por isso, rendem anúncios, que rendem dinheiro, etc., perfazendo um movimento cíclico que se locupleta em várias outras ramificações, girando a roda-gigante do capital.

Não percamos de vista que o genocídio dos jovens negros nas favelas, a criminalização da pobreza e da negritude, a política de guerra às drogas e a superpopulação carcerária, composta esmagadoramente por moradores da periferia, são a face mais nefasta do “espetáculo” brasileiro. Para a sociedade do controle e do consumo, o dinheiro gerado pela construção do VLT, à base de remoções violentas, é muito mais importante que as mortes cotidianas do Tancredo, do Areal, da Vila Cazumba...

Mas, afinal, quem se importa com os mortos da favela?







sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Crônicas da Cidade: A arte de levar uma geral

(Ilustrações: estênceis de Banksy)

Artur Pires

Se tem uma coisa que ocorre com certa frequência por estas bandas da Cidade dos Funcionários é a famosa geral, ou o baculejo, cuja forma abreviada é “baca”, que vem a ser, para os desavisados ou não iniciados no convívio de rua, a revista policial. São incontáveis as vezes, ao longo desses anos todos de vivência cidadeana, em que  tivemos que colocar as mãos na cabeça e fazer a famigerada cara de inocente.

De tão corriqueira que é a cena, alguns desses momentos constrangedores correram de boca em boca e hoje fazem parte do grosso caldo de estórias que formam a cultura cidadeana.

Uma geral bem conhecida por aqui aconteceu há muito tempo, no finalzim dos anos 90. A molecada descia pras bandas do terreno do Antônio Caixeira pra soltar raia. Era uma febre! O Rato era um dos mais verminosos na arte de empinar as pipas. Marcava presença sempre.

Vale aqui abrir um parêntese para falar um pouco do Rato, esse personagem folclórico do bairro, que mora no Tancredo Neves, comunidade situada na região limítrofe entre a Cidade dos Funcionários e o Jardim das Oliveiras. O Rato é também chamado de Cará porque, por morar às margens da Lagoa da Zeza, dizia que quando chovia no Tancredo e seu barraco alagava, os peixes vinham pular à beira de sua porta. E tome cará a semana toda! Assim, sempre que chovia, ele ficava em dúvida se achava ruim o temporal alagar sua casa ou achava bom o fato de se empanturrar de peixe! Fecha parêntese!

Pois bem, voltando à cena, passado devidamente o cerol, estavam todos soltando raias; o vento de julho, que sopra mais forte que o habitual, ajudava a empiná-las com mais facilidade, ainda que uns e outros, vez por outra, embolassem suas linhas chinesas, a novidade da época. O Rato era craque na arte de laçar e arriar as raias alheias. A cada pipa arriada, era uma tiração de onda danada.

 - Ieeeeiiiiii, zombavam uns dos outros!

Foi num desses momentos de diversão que a polícia chegou e anunciou a geral. Como o Rato era o mais velho da turma (já passava dos 18, enquanto a maioria tinha entre 14 e 16) e também o mais negro (sim, a PM é racista!), foi justamente nele que os porc..., ops, os policiais encarnaram:

- Mora onde, tu?
- Moro no Tancredo, senhor. Mas meu irmão mora nessa rua ali subindo, ó, disse ele, com as pernas trêmulas e as mãos à cabeça.
- Tão fazendo o que aqui?
- Tá vendo não? Tamo soltando raia!

Nesse instante, a audácia do Rato fez que com os outros não se contivessem e, escorados à parede também com as mãos para cima, rissem baixinho. O polícia se incomodou com aquela gracinha e aumentou o tom.

- Gaiatim, né, maxo (o macho que designa masculino é grafado com “ch”, mas esse “maxo” aqui, típica expressão do cearensês, é com “x” mesmo!), tu? disse o policial, já perdendo a pouca paciência costumeira.
- Só respondi o que o senhor perguntou, cidadão, disse Rato.
- Pois cadê o teu documento? Bora, cadê?
- Cidadão, com todo o respeito, mas eu nunca ouvi falar que pra soltar raia precisava ter documento não, ó!

Nessa hora, bastou a primeira risada tímida pra todos caírem numa gargalhada geral.  O polícia ficou descontrolado e meteu o Rato no camburão. Horas mais tarde, o irmão dele, Neneca, que morava ali próximo, foi tirá-lo do xilindró. Passado o constrangimento, a estória ficou e, certamente, será passada de geração para geração entre os moradores.

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Noutra vez, dia desses tomávamos um litrão na barraca da Lôra, na praça, acompanhado de um churrasquim de gato e umas rodelas de limão, quando uma viatura do Ronda, com três polícias, chega e anuncia a geral:

- Os homens tudim com as mãos pra cima!

Um dos amigos, que estava acompanhado da namorada, fez a infeliz pergunta:

- Até eu, cidadão?
- E tu num é homem não, porra!

Mal o cana acabou de falar e o amigo se posicionou pra levar o baca também. O que a polícia não esperava é que estivesse ali o Daniel, um cara que nasceu com o tino pra comédia e vive inventando expressões e palavras que depois se espalham pelo bairro – me arrisco a dizer que algumas grassam por toda a cidade. O “n´tem quem diga” (que pode ser usado em qualquer conversação, pra atestar, confirmar ou negar algo – faça aí você o teste!) e o “já deixei duas muié por causa disso” (ao ser questionado sobre alguma coisa que não quer responder) são as duas novidades que campeiam por estas bandas no momento.

Daniel vive também dizendo que na casa dele, na qual vive com a mulher, quem manda é ele: “Lá em casa quem manda sou eu. A mulher manda eu lavar as roupas e o que eu faço? Lavo, mas num enxugo! Manda eu varrer a casa? Eu varro, mas num apanho o lixo. Manda eu fazer o almoço? Eu faço, mas num ponho a mesa”.  E assim prossegue com seu repertório de gaiatices...

Nesse dia da geral, o polícia encostou nele e, enquanto o apalpava, iniciou o interrogatório:

- Tu deve alguma coisa, maxo?
- Sim, só cartão de crédito!
 - Não tô falando disso não. Quero saber é se teu nome é sujo?
- Sim, no SPC e Serasa.
- Rapaz, o que eu quero saber é se tu responde alguma coisa?
- Só o que você perguntar!
- Pois eu tô perguntando é se tu deve alguma coisa na Justiça, maxo? disse o polícia, já bufando pelas narinas.
- Ah, porque você não disse logo. Pra Justiça eu devo só duas cópias de um documento que eu tirei no fórum e nunca paguei. E só num paguei porque a moça não tinha troco pra 50!
- Maxo, tô vendo que tu é cheio de gracinha. Tu usa droga?
- Se Derby e Ypióca entrarem nessas estatísticas...
- Não tô falando disso. Tô falando de droga mesmo!
- De vez em quando assisto o Faustão...
- É o quê, maxo?
- Pois é, n´tem quem diga!
- Maxo, vai, vai, vai, que tu tá é bêbo!

E assim, terminada a geral, todos voltamos às nossas cadeiras e continuamos a prosa e a bebedeira. O litrão já ia pela canela da garrafa, mas depois daquele geral bem sucedida (isso é, ninguém tinha rodado), o que nos restava era pedir um outro litro pra comemorar.

- Ô Lora, traz mais um aí pra espantar o nervosismo!

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Domingo na feira

Foto: Fabiane de Paula
Artur Pires

- Taqui, meu senhor, ó! disse a tiazinha, bem preta e pano amarrado à cabeça, retirando do panelão, donde borbulhava água quente que cozinhava outras espigas, um milho verde, entregando-o em mãos a um homem de grande bucho, mãos peludas e bigode volumoso – que parecia muito com o Leôncio, do Pica-Pau. O homenzarrão agradeceu, pagou, e se agarrou com gula à espiga.

O segredo de aproveitar o melhor da feira é acordar cedo. Foi o que fizemos. E olhe que acordar cedo no domingo não é uma das coisas que mais aprecio, não, viu! Mas tínhamos que ir à feira. Eu precisava comprar um aquário e o amigo que me acompanhou, um peixe beta. E preço melhor que o da feira não há!

A feira da Parangaba – também conhecida como feira dos pássaros – ocorre há mais de duas décadas, às margens da lagoa que dá nome a ela e ao bairro. Lá, você encontra a venda de tudo: rolo de fumo, rapadura, mel, farinha de mandioca, molho de pimenta malagueta, pó de castanha, linhaça, hortaliças e frutas diversas, porco, pato, galinha de capoeira, capote, caranguejo, cará, gado, coelho, cabra, ganso, peru (todos os animais citados, vivos ou mortos, à escolha do freguês), cotia, cachorro, gato, galo indiano de briga, pássaros, muitos pássaros (vimos até um filhote de carcará – “pega, mata e come, num vai morrer de fome, mais coragem do que homem” - sendo comercializado: uma pena!), todo tipo de produto eletrônico, mecânico e hidráulico, roupas, bonés, lupas, CDs, DVDs, vinis, motos, carros, bicicletas, celulares, tablets, dindin, caldo de cana, caldim de caridade, buchada, sarrabulho, panelada, feijoada, cerveja, cachaça, jogos pra perder dinheiro (perdi dois contos num lá onde tinha que chutar a bola e derrubar duas garrafas de uma vez), etc. No caso da feira, nem o etc. vai ser capaz de dar conta da variedade de coisas que se encontra por ali... Até ciganas, nas devidas indumentárias, prontas para ler as mãos têm na feira! A feira da Parangaba é maior que a do Assaré, que a de Redenção, que a da Barbalha e a do Crato juntas; é um mundão de gostos, sabores, cores e gentes...

- Vai querer, tá bem fresquinha, diz o vendedor de carnes, amolando com muita rapidez o enorme facão com que corta habilidosamente aqueles troços de porco.
- Seu Zé, hoje eu vou querer só a orelha, o rabo e bem muito toicim, que é pr´eu fazer uma feijoada daquelas lá em casa.
 - Só se for agora, minha jóia! responde de bate-pronto o vendedor, se preparando para fatiar o leitão.

Na feira, há tipos diversos. Enquanto tinha uma caixinha de som à mão e escutava um forró da favela, um pivete que vendia uma bike, com guidão alto – no estilo da favela -, anunciava:

- Óia, minino, bike novinha hein! Só o freio que tá pêdu, mas o resto tá rochedo!

Passeio os olhos rapidamente sobre a bicicleta e ela me parece bastante baqueada. Pensei: “ora só o freio, besta é quem compra!”.

- Tá rochedo vete, só olhando mesmo, respondi-lhe, fazendo um gesto de cumprimento com a cabeça, no que fui prontamente correspondido.

Dali, rumamos para a tenda do seu João do Caldo, um senhor com bastante senso de humor, onde rolava um caldim de cana. 

- Seu João, eu vou querer um!
- Na hora, meu fi. Deixa eu botar aqui no seu caneco? disse seu João, em duplo sentido, rindo tímido, de quem está fazendo graça!
- Hehehe, gaiatim, né? respondi encabulado.
- Tô falando sério, meu fi. Olhe, tem coxinha e outros salgados também. Já tá comido? brincou novamente o vendedor de caldo, lançando mão de um sorriso generoso. 
- Hahaha... Já, já! Tomei um café da manhã reforçado mah. Na próxima vez eu como. Por hoje, só o caldim mesmo!

Foto: Sara Maia
Já tínhamos percorrido toda a feira. Agora, era hora de realizar um desejo, uma vontade antiga: torrar um à beira da lagoa da Parangaba. Chegando à margem, nos sentamos e experimentamos aquela brisa suave que vinha das águas, mesmo o clima estando quente! Garças planavam perto de onde estávamos, pairando no ar, à procura dos carás que abundam por ali. Ao lado, numa curva da lagoa, pivetes chupavam mangas coités e lançavam uma tarrafa na água, na esperança de pegar peixes. Foi sal! Ao puxar de volta, dezenas de carás medindo uma palma de mão, em média, estavam presos à rede de pesca. Os pivetes comemoraram e chuparam mais mangas! Na metade do beque, chegou um feirante pedindo uma bolinha, e repartimos os três aquele “pão”. Ficamos por ali, à beira da lagoa, recebendo de bom grado aquele vento que soprava manso e nos fazia divagar sobre a grandeza da vida...

Tempos depois, a larica apertou.

- Bora comer uma panelada? sugeriu o amigo que me acompanhava.
- Ora se...
- Tem ali, ó, disse ele, apontando para uma das tenda da feira.

A barraquinha que tinha uma sinuca estava lotada, sem cadeiras e mesa livres. O jeito foi se contentar numa sem sinuca mesmo. “Deixa pra jogar noutra oportunidade”, pensei. Enquanto aguardávamos a panelada, pedimos uma cerveja gelada pra aplacar aquele calor. Ao lado, um papudim solitário nos fitava, comia uma buchada e tomava um burrim, que já ia pela cintura. Ao fundo, das caixas de som afixadas às estacas que amparavam a estrutura, Zezé de Camargo gritava estridente: “Menina veneno, o mundo é pequeno demais pra nós dois...”. Colher às mãos, comemos a panelada gulosamente. Hummmm!!! Ô coisa boa! Deu até pra escorrer o suor da testa.

Já era perto do meio-dia quando nos recuperamos da panelada e decidimos retornar à Cidade dos Funcionários. Além do aquário, ainda deu tempo de comprar um mel de abelha italiana pra curar a rouquidão e as dores de garganta e uma farinha de castanha do Pará pra adicionar à bananada do café da manhã e dar-lhe mais sustança.

O que fica de mais rico da feira é o contato com tipos diversos, principalmente com uma Fortaleza periférica, segregada – nenhum pouco apavorada! -, que nos escapa muitas vezes, mas que mantém firme e lindamente suas origens de povo, que se sustenta em meio a essa selva de pedra excludente com luta, bom humor, criatividade, sangue nos olhos e boas doses de resistência.

- Vai uma esperança aí? Tá fresquinha!

terça-feira, 15 de outubro de 2013

*Ode à loucura e ao vandalismo!

(Ilustração retirada de um grafite de Banksy)

Artur Pires

As coisas não caminham muito bem. O mundo anda às avessas, anômalo, de embrulhar o estômago. Dia desses três garotas, crianças, tentaram assaltar uma mulher na Praia do Futuro, em Fortaleza. Uma delas esfaqueou a vítima. Queriam dinheiro para comprar roupas de grife e drogas. Elas, as crianças, não têm dinheiro, tampouco roupas de grife. Mas a sociedade grita a todo instante que elas precisam vestir-se assim e assado para que sejam aceitas, incorporadas, admitidas à vida social. O que elas fazem, então? Vão atrás de satisfazer o desejo, o fetiche consumista na marra, na faca, literalmente! Aí os arautos do pavor e os jornalistas cínicos promovem um linchamento verbal contra as crianças. Esquecem, ou melhor, escondem os reais motivos que as levam a praticarem tais atos: a sociedade do consumo e seus padrões de comportamento fetichizantes. Apegam-se a soluções reducionistas e fascistas (redução da maioridade penal e “bandido bom é bandido morto”), que em nada vão contribuir para mudar esse quadro.

As coisas não caminham nada bem. Crianças pobres esfaqueiam pessoas, não brincam mais: fazem malabarismos nos sinais – não por brincadeira, mas porque têm a obrigação de levar o “de comer” para casa -, reclamam fome com olhos desesperançosos. Tão novas e a esperança de dias melhores já lhes escapa. A sociedade normaliza tudo isso. Você se lembra da última vez que viu uma dessas crianças? Sim, ver mesmo, conversar, senti-la, saber de onde vem, para onde vai, o que pensa da vida... Geralmente, a sociedade não as vê; protegida por trás dos vidros dos carros, a classe média passeia os olhos sobre elas superficialmente, coça os bolsos, joga uma moeda e se vai!

As coisas não vão indo bem. A polícia passa o sarrafo nos manifestantes. Mas, nos jornais, as vidraças quebradas dos bancos valem mais a manchete do que o sangue que jorra dos que protestam. É preciso, para a imprensa convencional, deslegitimar as manifestações. Ela, a mídia, tem medo do povo nas ruas. É mais importante, para o PIG, defender a todo custo a “sagrada propriedade privada”. Se une à polícia e, em uníssono, transmitem uma versão única: vandalismo! Sua narrativa é uma só! Na sociedade atual, boatos da mídia e da polícia adquirem, de imediato, o peso indiscutível de provas históricas seculares. “A imbecilidade acha que tudo está claro quando a televisão mostra uma imagem bonita, comentada com uma mentira atrevida. A alienação do espectador em favor do objeto contemplado se expressa assim: quanto mais ele contempla, menos vive” (Guy Debord, A sociedade do espetáculo). Ou seja: uma imagem – manipulada – vale mais que mil palavras! Voltando ao quebra-quebra das agências bancárias, Brecht indagava, muito tempo atrás, antes mesmos do capitalismo financeiro, “o que é roubar um banco comparado com fundá-lo?” Essas instituições controlam, com uma eficiência de dar medo, as sociedades hoje em dia. Amontoam-se sobre lucros exorbitantes e riem da cara dos explorados. No Brasil, por exemplo, nos últimos doze meses, os banqueiros lucraram 59 bilhões de reais, à custa da exploração dos trabalhadores bancários e da própria sociedade, por meio das taxas abusivas e da especulação financeira – dinheiro fictício gerando mais dinheiro fictício. “A maior parte do capital de banco é pois puramente fictícia. Conforme sua organização formal, o sistema bancário é o produto mais artificial e mais desenvolvido do modo de produção capitalista. Ao mesmo tempo, o banco e o crédito tornam-se o meio mais poderoso para estender a produção capitalista para além de seus próprios limites, e um dos veículos mais ativos das crises e da especulação” (Karl Marx, O Capital).

As coisas caminham mal. A mídia empresarial faz o que quer com os fatos, os transforma, os distorce, revira-os de cabeça para baixo, tudo em nome dos seus negócio$$. Quando se fala em regular e democratizar os meios de comunicação, ela brada raivosa que querem censurá-la. Balela! Diversos países no mundo têm órgãos reguladores de comunicação social. Não querer ser regulada é querer sustentar o oligopólio midiático. À mídia golpista, não interessa a comunicação social para todos, mas o jornalismo de interesse, da troca de favores, do hipócrita tapinha nas costas, de manutenção do status quo, de atrelamento à sociedade do espetáculo. Ela, a mídia venal, não discute sequer minimamente alternativas para um novo modelo de sociedade. Ela quer que as coisas continuem caminhando mal para a maioria, porque assim ela caminha num mar de rosas.  

(Ilustração: Thyagão/O Povo)

As coisas vão de mal a pior. Fortaleza chora, pois o Cocó sangra. O prefeito e o governador impuseram, à base da força policial, a construção de um monstrengo de concreto no meio do parque ecológico. Os acampados, os heróicos fortalezenses que se dispuseram por três meses a ocupar o parque, foram dali retirados a balas de borracha e bombas de gás (todo o apoio aos acampados do Cocó!). Os executivos municipal e estadual, em pleno ano de 2013, ainda pensam que progresso é dar vez aos carros particulares. É a ditadura do automóvel! Para eles, pobres coitados, construir viadutos é mais importante do que preservar o verde. Os mesmos viadutos que um dia irão abrigar, embaixo de suas marquises, outras crianças que reclamam fome e têm olhos de tristeza. Provavelmente virão dali perto, da comunidade dos trilhos. Pois ali, nos trilhos e nas comunidades circunvizinhas, Roberto Cláudio e Cid não fizeram nada para mudar aquela realidade. Quer dizer, vamos ser justos, o governador pretende fazer sim: remover várias famílias para abrir caminho ao VLT. É a vida, a história de famílias que se sentem pertencentes àquele lugar, dando passagem à “modernidade cidista”. Debord fala que “o urbanismo é a tomada de posse do ambiente natural e humano pelo capitalismo que, ao desenvolver sua lógica de dominação absoluta, pode e deve agora refazer a totalidade do espaço como seu próprio cenário”. É um urbanismo predatório, que se propõe, com ímpeto ferrenho, a isolar as pessoas, afastá-las das ruas, dos espaços coletivos, das praças. Ainda segundo Debord, “do automóvel à televisão, todos os bens selecionados pelo sistema espetacular são também suas armas para o reforço constante das condições de isolamento das ‘multidões solitárias’”. Isso é importante para a manutenção dessa ordem simbólica.

As coisas vão indo muito mal. Uma substância como a cannabis sativa é proibida socialmente e seu consumo é tachado por esta mesma sociedade como marginal. Entretanto, mulheres seminuas sorriem e se exibem na tevê nos comerciais de cerveja em horário nobre, quando inúmeras pesquisas científicas já deixaram claro que o cigarro e o álcool acarretam muito mais danos à saúde do que a maconha. “Desde pequeno você é induzido a fumar, induzido a beber, ouvindo a tevê falar: diga não às drogas, use camisinha e pare de brigar, mas beba muito álcool até sua barriga inchar” (A culpa é de quem? - Planet Hemp). Sabe por que isso acontece? Porque a indústria da bebida tem um lobby poderosíssimo, com muita influência dentro da jogatina financeira internacional. Ademais, a história da criminalização da maconha tem total relação com a criminalização da negritude e da pobreza. A erva foi proibida no Brasil, por volta dos anos 30 do século passado, no mesmo contexto no qual foram proibidos o samba e a capoeira, porque eram costumes dos negros. “Os negros já fumavam erva antes d´África deixar, mas os senhores proibiram por não querê-los libertar, e os senhores de hoje em dia estão proibindo também, se o pobre começa a pensar parece que incomoda alguém” (A culpa é de quem? - Planet Hemp). A mesma lógica serve para os Estados Unidos - país-símbolo da ineficiente guerra às drogas -, que proibiu a maconha em seu território porque seu uso estava bastante relacionado com os imigrantes mexicanos que cruzavam a fronteira. 

Enfim, enquanto a legalização não vem, a polícia vai continuar comendo o troco dos traficantes nas favelas - os peixes pequenos desse comércio -, jovens, em maioria negros, vão continuar se matando pelo controle da atividade nas comunidades, e os grandes tubarões, aqueles que administram as rotas internacionais do tráfico, vão continuar rindo debochadamente da cara do mundo, acenderão seus charutos cubanos, tomarão seu whisky escocês, e se refestelarão numa espreguiçadeira de alguma praia paradisíaca de águas cristalinas pras bandas do Índico. Nessa sociedade, do consumo de aparências, a máfia encontrou seu espaço, sente-se em casa. É um engano, hoje em dia, tentar opor o Estado às máfias internacionais de drogas, de armas, do ramo imobiliário, dos altos cargos políticos, dos bancos, da indústria do entretenimento, dos transportes, dos meios de comunicação. São farinhas do mesmo saco. Estão profundamente enredados numa troca de favores permanente. Brasília é um exemplo clássico de máfia política que se elege financiada por outras máfias. Foucault, em seu ensaio As redes de poder, diz que quando o capitalismo percebeu, lá pelo século XVIII, que muitas transações estavam ocorrendo à margem da legalidade, não tratou de pôr um fim a elas, mas sim de capturá-las para baixo das suas asas, lucrar também com os processos ilegais. O ilegalismo foi então um dos responsáveis pelo desenvolvimento da sociedade capitalista. E é ainda hoje! A ilegalidade das máfias se integra ao movimento cíclico que faz girar a roda-gigante da economia mundial. Mas tudo isso é sorrateiramente cortinado. "Os piores criminosos tu nunca vai saber ao certo, dá arrepio imaginar que quase nada é descoberto" (Até quando Brasil Colônia? – Oriente). Debord fala sobre isso ao afirmar que “o espetáculo fez trinfar o segredo”. Ou seja, as máfias internacionais, com ramificações nos diversos países, se locupletam ininterruptamente, são profundamente cúmplices à sociedade do consumo, conspiram sagazmente para o controle eterno, num jogo às sombras, escondido, mas bastante eficiente. É nesse sentido que Marx, n´O Capital, diz que “em cada país, os grandes industriais de um ramo determinado se agrupam em um cartel para regulamentar a produção”. “Antigamente, só se conspirava contra a ordem estabelecida. Hoje, conspirar em causa própria é uma nova profissão em franco desenvolvimento. Sob a dominação espetacular, conspira-se para mantê-la e para garantir o que só ela pode chamar de seu bom andamento. Essa conspiração é parte integrante de seu funcionamento” (Guy Debord, A sociedade do espetáculo).

As coisas estão indo pelo ralo. Pescadores estão sendo expulsos de suas casas à beira-mar para gringos construírem resorts e depois explorarem a força de trabalho dos... pescadores. Índios são expulsos de suas terras para que ruralistas abocanhem latifúndios para o plantio de soja e para que o Governo Federal construa hidrelétrica. “Os índios dizimados pelo poder do Estado, hoje usando Nike e por doenças afetados” (Até quando Brasil Colônia? – Oriente).  Moradores de favelas são submetidos a constrangimentos rotineiros, abordagens violentas, abusos, podendo até desaparecer por causas misteriosas após serem recolhidos para uma averiguação policial. Se morarem onde funciona uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), o risco do desaparecimento aumenta consideravelmente.

As coisas estão indo para o fundo do poço. O deus da época é o consumismo. A deusa, a publicidade. Juntos, eles dão as cartas nesse jogo de aparências. A publicidade vende a ilusão da felicidade, embrulhada e dissipada ao longo do ano nos dias das mães, dos pais, das crianças, dos namorados, páscoa, natal, etc. Usa cada vez mais técnicas rebuscadas de condicionamento e fetiche. A liberdade e a essência humana escapam às nossas mãos, pois vão dando lugar ao aprisionamento à lógica do consumo e à “artificialização” da vida, ao movimento do não-vivo. Os shoppings centers são mais importantes que as praças de bairro. Os carros mais que os pedestres. O viaduto e a ponte sobre o Cocó mais que o próprio Cocó. O dinheiro mais que tudo! Tudo isso é normalizado por uma série de códigos e condutas sócio-morais que vão se introjetando sorrateiramente na psique coletiva das sociedades. Dessa forma, vive-se um totalitarismo, uma ditadura travestida de liberdade: a liberdade de – adivinha? - comprar!

Aquele que não se conforma com as coisas como estão, que não quer sentar “no trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar” (Ouro de Tolo - viva Raul!), ou tampouco quer ficar “em casa, guardado por deus, contando os seus metais" (Como nossos pais -  Belchior), e, principalmente, que milita para que elas mudem, é “coisificado” como louco ou – palavra da moda - vândalo. Contudo, ser tachado de louco ou vândalo por essa sociedade doentia é sinal de sanidade e resistência, marca de que ainda não se anestesiaram nem transigiram ao estado das coisas, prova inconteste de que ainda pulsam. Isso quer dizer que as coisas podem mudar. Sim, as coisas podem mudar! A loucura e o vandalismo serão cada vez mais importantes para essa mudança social revolucionária! Por isso, sejamos cada vez mais loucos! Sejamos cada vez mais vândalos!

"“Um brinde aos loucos. Aos desajustados. Aos rebeldes. Aos criadores de caso. Os pinos redondos nos buracos quadrados. Aqueles que vêem as coisas de forma diferente. Eles não curtem regras. E não respeitam o status quo. Você pode citá-los, discordar deles, glorificá-los ou caluniá-los. Mas a única coisa que você não pode fazer é ignorá-los. Porque eles mudam as coisas. Empurram a raça humana para a frente. E, enquanto alguns os vêem como loucos, nós os vemos como geniais. Porque as pessoas loucas o bastante para acreditar que podem mudar o mundo, são as que o mudam.” (Jack Kerouac)


*Artigo publicado na Rede Anote